O estudo teológico e a busca das virtudes cristãs

Por Gabriel Ribeiro

gabrielribeiro0004@gmail.com

 

INTRODUÇÃO

Este artigo parte da premissa de que para viver a Fé cristã de maneira plena, todo católico deve estudar Teologia. O estudo teológico é indispensável ao católico contemporâneo justamente por vivermos num contexto pós-moderno que incentiva ideais abertamente anti-cristãos, como “ecumenismo” e “liberdade religiosa”.

Educar os fiéis sempre foi uma missão da Santa Madre Igreja Católica, que por isso mesmo assumiu papel de professora na civilização ocidental, desempenhando uma função pedagógica ao Homem do Ocidente. Todavia, a instrução teológica historicamente sempre foi considerada algo “elitista” ou “restrito” demais, motivo que fez a Teologia adotar uma imagem caricata na sociedade moderna (de algo eclusivista).

Dito isso, este pequeno ensaio tem o objetivo de analisar cmo a busca das virtudes cristãs pode ser feita através do estudo teológico, explorando o modo pela qual essas virtudes devem ser buscadas. Para isso, tentaremos apresentar ao leitor nossas interpretações pessoais sobre os termos “teologia” e “virtude”, mostrando porque ocorreu a separação histórica entre os campos da Filosofia e Teologia, e citando a vida do Homem medieval como exemplo de vivência das virtudes cristãs.

 

1.    O que é Teologia?

Na história ocidental, a ciência do “ser enquanto ser” e a investigação da “substância eterna, imóvel e separada” eram realizadas em apenas um campo de conhecimentos:  a Filosofia. A distinção entre Filosofia e Teologia deu-se de maneira lenta e gradual, seja reconhecendo a majestade das análises teológicas, seja admitindo as grandes diferenças entre os discursos teológicos sobre Deus, e as análises filosóficas sobre a divindade (sempre subjetivas e relativizadas|). Logo descobriu-se que a Filosofia não se encarregava de estudar a divindade em si, mas sim em explicar a existência humana dando um sentido à vida por meio de análises Das ações do Homem (LIBANIO, 1996):

“No mundo latino, Abelardo usa-o em sentido teológico cristão para referir-se ao tratado sobre Deus, enquanto se empregava o termo “beneficia” para teologia sobre Cristo. Apesar desse uso de Abelardo, a escolástica preferiu outros nomes para a teologia: “doctrina christiana”, “doctrina divina”, “sacra doctrina”, “divina insitutio”, “divinitas”, “Scriptura”, “Scra Pgina”. Santo Tomás manusei os termos “sacra doctrina” ou “doctrina christina” e raramente o termo “theologia”, e num sentido diferente do atual. O termo “theologia”, ainda não se firmara na alta escolástica.” (LIBANIO, 1996, p. 66)

 

A separação entre a Teologia e a Filosofia gerou a criação de novos campos de conhecimento através de subdivisões conceituais, como o nascimento da “Teologia Natural”, que a princípio propunha investigar a essência das a fim de constatar o máximo de verdades sobre Deus. A Teologia Natural viria a ser reduzida à racionalização no século 17, como bem criticou Kant:

“Afirmo, pois, que todas as tentativas de um uso apenas especulativo da razão com respeito à teologia são totalmente infrutíferas e, pela sua índole intrínseca, nulas e vãs; mas que os princípios do seu uso natural não conduzem, de modo algum, a qualquer teologia e que, por conseguinte, se não tomarmos como base as leis morais ou não nos servirmos delas como fio condutor, não poderá haver, em absoluto, uma teologia da razão. Porque todos os princípios sintéticos do entendimento são de uso imanente e para o conhecimento de um Ser supremo requere-se o seu uso transcendente, para o qual o nosso entendimento não está equipado.” (KANT, 2001, p.119)

 

O termo “Teologia” guarda em torno de si grande relação com a Religião. A busca teológica é uma busca religiosa, guiada pela racionalidade em comunhão com a Fé. A Teologia não é somente um estudo acadêmico: é a comprovação acadêmica da Verdade cristã (LIBANIO, 1996).

Figura 1. A Teologia separou-se da Filosofia por ter um objeto de estudo diferente, e por aprofundar as discussões sobre a natureza divina de forma mais aprofundada e menos subjetiva.

A Teologia pode ser entendida de forma rudimentar como a ciência que investiga Deus por meio da Fé (AQUINO, 2002). Ela divide-se formalmente em disciplinas (ou sub-áreas) que concentram discussões em aspectos específicos da natureza divina. Assim, denominamos por exemplo “Teologia Dogmática”, a disciplina teológica que fundamenta-se nas verdades reveladas e considera o Novo Testamento como plenitude do projeto salvífico iniciado no Antigo Testamento, complementando a abordagem da “Teologia Fundamental”. Já a “Teologia Moral” faz uso da dogmática como base, mas seu intuito está ligado à santificação pessoal. Nela está inserida a “Teologia Ascética”, a prover um caminho à santificação para além da vivência correta da religião; e a “Teologia Mística”, cujo “meio” ou objeto de estudo (e prática) é a vida contemplativa (TANQUEREY, 1961).

 

2.    A importância da Teologia na busca das virtudes cristãs

Uma vez compreendida a forma pela qual Teologia e Filosofia se diferenciam, e constatada que a Teologia tem íntima ligação com a prática religiosa (sendo a Religião a parte mais interessada na investigação teológica), devemos agora analisar outro importante conceito: as virtudes. Por que afinal, faz-se necessária uma Teologia própria à Moral? Por que o Homem deve buscar virtudes através do estudo teológico?

É provado que a Santa Doutrina Católica dispõe dos ensinamentos para se alcançar a bem aventurança, que é parte da natureza divina e fim último do ser humano (AQUINO, 2002). Da mesma forma, a Metafísica Católica nos ensina que o estado de graça adquirido durante os sacramentos é suficiente para a salvação (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1999). Entretanto, tais ensinamentos, uma vez assimilados, demandam certa propensão do indivíduo à glorificação divina, tal como um solo fértil na geração de frutos, pois a vontade acomodada do ser humano não intenta ser santa verdadeiramente.

O Homem, por si mesmo, não é capaz de aprofundar sua busca espiritual. Nesse sentido, a Teologia Moral se revela um grande benefício, pois auxilia o ser humano a guiar-se na busca das virtudes cristãs, assim como a combater seus vícios comportamentais.

Padre Schouppe (1882) aponta certos princípios necessários ao surgimento daquilo que chama de ‘solidez da virtude’, o que seria algo como a fertilização de um solo. Assim,  em paralelo às características da virtude sólida, o ser humano obteria a fertilização de sua vida espiritual (seu solo).

Se a virtude sólida prevalecer ante os vícios e se tornar inabalável, tem-se que Teologia e virtude se relacionam na Teologia Moral, mais especificamente na disciplina conhecida como “Ascética”.

Figura 2. A Teologia ajuda o católico dedicado na busca pelas virtudes cristãs.

Platão (2016) descreve as virtudes necessárias para formar o caráter do ser humano em número de quatro: a coragem, a prudência, a temperança e a justiça. Porém, se para os gregos o trabalho das virtudes é resumido como hábito ou modo-de-ser (desenvolvido plenamente através da prática cotidiana), São Tomás de Aquino afirma que, para além das quatro virtudes relativas ao conhecimento acerca da realidade, há as chamadas virtudes teologais, sendo estas a Fé, a Esperança e a Caridade (BAZUCHI, 2011). Para Aquino, virtudes teologais não se alcançam por mérito ou esforço pessoal, mas são dispostas por Deus, ainda que haja práticas espirituais a viabilizar este processo.

 

3.    O modo de vida da Idade Média: por que a vida medieval era geralmente virtuosa?

Figura 3. A Educação Medieval tinha um forte caráter teológico. Por isso, o Homem medieval em geral tinha uma visão de mundo mais virtuosa, que se baseava na educação moral recebida por ele (mesmo que não tivesse conhecimentos teológicos profundos).

Longe de querermos fazer uma romantização do período medieval (tal qual os perenialistas guenonianos o fazem), podemos facilmente constatar que o Catolicismo ensino durante mais de 10 séculos a busca por virtudes e pelo aperfeiçoamento moral (PERNOUD, 1944). A busca da Beleza, da Verdade e do Bem eram objetivos de vida da sociedade medieval, e esses valores faziam parte do imaginário popular como modelos a serem alcançados.

A inclinação à vida religiosa no medievo, pode ser explicada até certo ponto pela presença das perspectivas sobrenatural e teleológica (ação subordinada a um fim último) na vida privada. Mas como poderia o cidadão médio do período medieval estar à par de uma moral teológica tão reestrita aos religiosos consagrados?

A historiadora medievalista Regine Pernoud afirma que a sociedade medieval é melhor compreendida por sua organização familiar, em oposição à divisão convencional em classes, por tratar-se de um raciocínio não aplicável à maior parte do período. A história das famílias e das instituições familiares, cuja figura do pai age mais como um administrador do que como um representante absoluto (em comparação com a Grécia antiga), foi uma importante característica do período medieval. Assim, essa constatação derruba o mito relativista de que a sociedade medieval era dominada apenas por “homens com poderes ilimitados”.

Dessa forma, ao entender que na Idade Média todas as pessoas (ricos ou humildes) possuíam sólidos relacionamentos de base familiar (seja no contexto de guildas ou de universidades), é possível traçar um panorama histórico mais assertivo acerca da educação à época, a fim de tentar entender porque a vida medieval era aparentemente mais virtuosa.

Aos sete anos, as crianças iniciavam seus estudos na escola paroquial local, sendo aceitos meninos e meninas de todas as rendas (sendo a crianças pobres, isentas de qualquer custo para estudar). No local se ensinava desde fundamentos matemáticos e teológicos, até (por vezes) fundamentos técnicos:

“Os meninos estudavam separados das meninas que, em geral, tinham escolas à parte, em menor número talvez, mas onde os estudos eram em muitos casos, de nível elevado. A abadia de Argenteuil, onde foi educada Heloisa, ensinava às meninas as Sagradas Escrituras, letras, medicina e até cirurgia, sem falar no grego e hebreu ensinados aí por Abelardo. Em geral, as pequenas escolas davam a seus alunos noções de gramática, aritmética, geometria, música, teologia, que lhes permitia alcançar os estudos universitários.” (PERNOUD, 1944, p.14)

 

Após cerca de 10 anos de preparação, o estudante ingressava na faculdade, onde aperfeiçoava o Trivium (gramática, retórica e lógica) e o Quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). Entretanto, vale lembrar que o cidadão médio medieval já possuía conhecimentos básicos de Latim (devido a fala e entonação em cantos gregorianos e do legendário mitológico). Isso porque a cultura não era dissociada da educação formal, e nem o saber teórico de práticas físicas, abordagem defendida em “A República” de Platão. E, ainda, tal como a cidade modelo de Platão, a Igreja Católica empregou o uso da arte como incentivo à busca pelo bem mais precioso disponível ao ser humano: a salvação de sua alma.

Toda a educação medieval tinha um caráter teológico. A divulgação dos ideais cristãos era feita abertamente nas escolas de formação, e a noção do Bem era vivida na prática por cidadãos comuns. Assim, o próprio modelo educacional medieval encorajava a busca pelas virtudes cristãs….e a retratação do belo na arte medieval também culminou nessa busca, pois os corações das pessoas eram atraídos para a Verdade, e os valores cristãos presentes no imaginário popular confirmavam essa realidade. De certa forma, o indivíduo da Idade Média viveu com maior proximidade a Teologia Cristã devido à sua instauração no cerne da civilização, mesmo que não compreendesse os conceitos teológicos de maneira formal.

 

4.    Por que a sociedade moderna não é virtuosa?

Para além da vida monástica, na qual o conjunto de práticas ascéticas são de fato participantes, a Teologia podia ser facilmente constatada na vida cotidiana do Homem medieval (mesmo aqueles que não eram religiosos consagrados).

Segundo a Metafísica Católica, uma alma verdadeiramente boa não pode ser “um pouco boa”; o Homem verdadeiramente virtuoso não se contenta em ser “um pouco virtuoso”; e uma alma que visa a comunhão com Deus não pode fazê-lo pela metade. Não há (ou não deveria haver!) espaço para mediocridade na vida de um católico: o cultivo das virtudes e da Moral devem ser plenos, completos.

Ora, de que outra forma devemos proceder quando os estudos sobre Deus (Teologia) revelam, além de sua natureza, projetos de mudança patente na vida interior de cada um? Não devemos mesmo nos dedicar de forma plena a mudar nossas vidas e aprimorar nossa Moral?

Os desafios para obter uma vida virtuosa sempre existiram na vida do Homem. Entretanto, algumas dificuldades particulares ao homem moderno podem ser melhor compreendidas quando comparadas ao modo de vida medieval. Aí se incluem:

a) A rejeição moderna ao sobrenatural (ou a deturpação que se faz do sobrenatural na modernidade);

b) A ausência de zelo pela salvação da própria alma (na constante lembrança da morte, que o Homem medieval sempre tinha em mente);

c) A presença de mais distrações no dia-dia (consumo descontrolado de conteúdo digital, vícios comportamentais, etc.),

d) A visão de mundo dominada por ideologias e premissas de origem dúbia e superficial, desconhecidas da maioria das pessoas.

 

Contrário a essa visão de mundo moderna, percebemos que a cosmogonia medieval tinha visão distinta da natureza e do papel do ser humano no mundo (o que lhe conferia uma preocupação moral mais aprofundada), com comportamentos do tipo:

a) Postura atenta à natureza das coisas e a essência dos comportamentos, fazendo com que o Homem se preocupasse mais com o significado real das ações humanas (e não com a superficialidade dos fatos);

b) Ausência de um sistema financeiro formalizado (capitalismo), que era substituído por uma economia de subsistência onde o direito à terra era cedido em troca da produção de alimentos e oferta de segurança (feudalismo);

c) Domínio das ações humanas por meio do desenvolvimento de um senso de dever orientado pela Moral (em detrimento ao conceito de “liberdade irrestrita” trabalhado pela modernidade);

d) Visão clara da finitude da existência humana, interpretando a morte não como uma tragédia (como a modernidade faz) mas como algo natural e necessário (o que fazia com que o Homem medieval tivesse uma postura de vida mais coerente com sua finitude).

 

As deturpações filosóficas incentivadas pela modernidade a partir do século 17 têm mostrado que o Homem moderno criou expectativas irreais sobre sua existência, estimulando a relativização dos ideais cristãos (como a Verdade e a Beleza) e incentivando até mesmo a relativização do Bem (e consequentemente o enfraquecimento da Moral Cristã). Esse tipo de pensamento deturpado, gerou uma frustração do Homem moderno com seu próprio modelo de vida, que passou a ser incompatível com a realidade e função que ele julgava compatíveis a seu ser.

Por fim, o resgate de uma vida espiritual que trabalhe tanto o intelecto quanto as escolhas da vida cotidiana (em concordância com os preceitos da doutrina Cristã) exige uma postura ativa, resultando na obtenção das virtudes cristãs. Porém, essa postura ativa não está presente no modo de vida moderno, interessada apenas por resultados rápidos e superficiais, e por análises limitadas dos acontecimentos e da existência humana.

A Teologia não encontra espaço na modernidade porque estimula a necessidade da busca ativa por Deus, para além dos estudos (na vida prática do ser humano). Além disso, o estudo teológico não é estimulado na vida moderna porque ele conduz necessariamente às virtudes cristãs (que não são admiradas na filosofia moderna). E finalmente, não devemos esquecer que a modernidade tem uma visão de mundo materialista e imanente, rejeitando o sobrenatural e se preocupando com o natural e o visível (visão essa superada pela Teologia, que busca a obtenção das virtudes cristãs a todo custo (ainda que não sejam alcançadas neste mundo) por meio da Graça Divina.

 

REFERÊNCIAS

 AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Vol II. 5 ed. São Paulo: Loyola, 2002

BAZUCHI, Kátia Regina Vieira. As Virtudes Cardeais em Tomás de Aquino. Brasília: 2011.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. A637/B664, 2001.

LIBANIO, J.B.; MURAD, Afonso. Introdução à Teologia: perfil, enfoques, tarefas. 9ª edição, São Paulo: Loyola,1996.

PERNOUD, Régine. Lumière du Moyen Age, Editions B. Grasset, Paris, 1944, cap. 8. Tradução PERMANÊNCIA, disponível em: https://permanencia.org.br/drupal/node/2113 acesso em 23/10/2022 às 14:33h

PLATÃO. A República. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

SCHOUPPE, Françoise Xavier. Sodality Director’s Manual. 1882. Tradução e Adaptação disponível em: https://salvemaria.com.br/virtude-solida acesso em 19/10/2022 às 19:34h

TANQUEREY, Adolphe. Compêndio de Teologia Ascética e Mística. 6ª edição. Porto: 1961.

VATICANO. Catecismo da Igreja Católica, 19ª edição. São Paulo: Loyola, 1999.

 

 

Esta gostando do conteúdo? Compartilhe!

Share on facebook
Share on whatsapp
Share on telegram

Deixe um comentário