A volta à Sagrada Tradição: reflexões de um católico (re)admitido à Santas Doutrina

por Daniel Formaio Reis

danielf-reis@hotmail.com

 

 

Para compreender o motivo pelo qual retornei ao Catolicismo por volta dos trinta e um anos de idade, é necessário inicialmente compreender os motivos que me fizeram “deixá-lo” na adolescência (aos doze ou treze anos) – os eventos estão ligados.

 

1. O mundo anti-Católico e minha saída da Igreja Romana

Buscando compreender melhor o que me fez tomar esta decisão naquele momento, é importante entender como eu enxergava o mundo e o próprio Catolicismo naqueles anos.

É certo que eu enxergava a Doutrina Católica com os olhos de um adolescente de classe-média, bombardeado diariamente com a visão de mundo peculiar pós-moderna. A reflexão dessa visão de mundo (weltanschauung) na qual estamos mergulhados desde o nascimento, é ato necessário para o conhecimento de si mesmo – uma vez que somente desta forma poderemos entender nossas tendências, comportamentos e percepção da realidade de modo geral.

Inicialmente precisamos levar em conta que o cerne desta visão de mundo é a cultura ocidental e as suas diversas transformações ao longo do tempo, como observa Christopher Dawnson (pg. 33): “A cultura do Ocidente é a atmosfera mental e emocional que há muito respiramos. Trata-se do ambiente que determina nosso modo de vida, assim como determinou o modo de vida dos nossos antepassados.”

Evidentemente que nossa cultura se constituiu de uma série de elementos que se modificaram ao longo do tempo; por isso a relevância em se estudar profundamente sua história para que possamos compreender as principais influências sofridas pela cultura ocidental numa ótica contemporânea.

A construção de ideologias modernas (como a doutrina marxista do materialismo histórico-dialético) e a tentativa de regimes políticos totalitários de criar mitos históricos como base psicológica para uma unificação social, fizeram-nos perceber que a história não consiste numa laboriosa acumulação de fatos, mas exerce importância direta sobre o destino das sociedades modernas. (DAWNSON, 2016).

É necessário observar de forma resumida, o processo pelo qual o Ocidente se consolidou e as transformações principais que se tornaram, então, os tijolos que constituíram a cosmovisão contemporânea.

É inegável que o eixo da cultura ocidental foi, e ainda é o Cristianismo. Ao longo do tempo, alguns corpos passaram a orbitar em torno da Santa Doutrina Cristã  – ideias ganharam força com os movimentos naturais no devir, como o nacionalismo medieval, o humanismo florentino e o “renascimento”.

Tais “corpos filosóficos” passaram a estranhar o Cristianismo e não mais desejar viver sob a influência deste, sob a força gravitacional que a Santa Doutrina lhes exercia. Vieram então a Reforma Protestante do século 16 e o Iluminismo dos séculos 17 e 18, que fizeram a convivência entre a Sagrada Tradição Cristã e essas correntes de pensamento ficarem cada vez mais impossíveis.

Alguns dos diversos “filhos” do pensamento iluminista, como o marxismo ou o positivismo, passaram a tratar o sagrado como “devaneio”, “falácia”, ou um “inebriante” desnecessário e maléfico, um “ópio do povo”. A razão pura, então, cuidaria da humanidade!

Este caldeirão de ideias modernas passou a conviver, inicialmente, sob uma atmosfera originariamente cristã a partir do século 16. Deste momento em diante, diversos conceitos filosóficos passaram a compor o acervo de interpretação do homem ocidental sobre o real e o abstrato – as lentes pelas quais vemos o mundo e o existir.

Nos últimos 4 séculos, diversas transformações conceituais deixaram produtos que se consolidaram na sociedade moderna como verdadeiros dogmas laicos; inclusive ideias que influenciaram aquele garotinho do começo do texto (eu mais jovem!).

Segundo Eric Voegelin,

a “teoria moderna política’ é constituída de certas características essenciais: a) pretensa irracionalidade da verdade revelada; b) dicotomia radical entre sujeito e objeto; c) prioridade do eu autônomo sobre a comunidade; d) tendência para neutralidade ética; e) necessidade de uma religião civil para suplantar a teologia cristã que perdeu autoridade; f) asserção unilateral dos direitos do homem contra o clássico direito da natureza e a lei natural cristã; g) eclipse dos valores tradicionais.” (VOEGELIN, 2012, p.58)

 

Imerso neste caldeirão fervente de ideias anti-cristãs, ainda que adotando formalmente a religião católica, eu me via bombardeado todos os dias por uma cultura que sempre insistiu em denegrir o Cristianismo por meio de filmes, da escola, da mídia e das próprias pessoas. Toda a sociedade em que vivia quando adolescente percebia o Cristianismo como algo ameaçador, perigoso ou enfraquecedor.

Com o tempo, não fazia sentido para mim, um jovem comum, continuar ligado ao Catolicismo, e a frequentar uma liturgia que “não me fazia sentido algum”. Decidi então abandonar a Santa Doutrina na qual havia sido batizado e crismado.

 

2. Distante de casa: os anos afastado da Santa Doutrina Cristã

Ainda assim algo não me agradava no secularismo pleno – eu olhava para o mundo, para o hedonismo crescente, para o desligamento com o sagrado e aquilo não me aprazia de forma alguma. Havia algo em mim que clamava por uma realidade transcendente, um grito de incompletude, havia muito claramente um clamor pelo sagrado, pelo divino, mas contaminado havia algo como uma necessidade de imbuir-se da ideia de ser especial e separado daquelas influências nefandas – eu queria ser superiormente sagrado que o outro.

Talvez meu anseio pelo sagrado fosse ainda resquício dos anos de formação católica. Mas naquele momento, minha busca pelo sagrado tinha eu como centro (e não mais Deus).

Veio então o Esoterismo Moderno, com sua retórica hipnotizadora e acolhedora: “Venha conosco aqui você será especial – os iniciados estão separados dos profanos, somos superiores!” . O discurso das Ordens Iniciáticas me fazia sentir-me forte, diferente, incompreendido: o orgulho mais profundo se manifestava.

As promessas do Esoterismo Moderno eram a iniciação em segredos, a obtenção de mistérios que me fariam tornar um homem superior, senhor de mim mesmo e do mundo – um pequeno demiurgo no melhor estilo gnóstico, um senhor tirano e independente.

Por meio de sortilégios afastaria toda sorte de malefícios, e ainda conseguiria aumentar as posses materiais, conquistar a pessoa amada, afastar os inimigos. As vezes as promessas eram mais arrojadas ainda – o supremo desvelamento da verdade, uma iluminação completa da consciência – eu me tornaria o deus de minha vida!

Adquiri vários volumes de obras esotéricas, dos mais conhecidos e básicos até alguns raros, e comecei a costurar diligentemente, minha colcha de retalhos: exercícios posturais de Hatha Yoga; estudos da escola de pensamento Samkhya; fragmentos de Cabalá; interpretações arbitrárias das Sagradas Escrituras;  neo-xamanismo e neo-paganismo; grimórios medievais; técnicas de divinação chinesas (I-Ching); e uma mistura caótica de elementos espiritualistas com estética vitoriana (do século 19).

Mas tudo isso não produzia qualquer resultado, nem mesmo clareava minhas ideias sobre o sentido da vida; na verdade só produzia confusão mental em mim, me deixando mais confuso.

Verifiquei que sozinho não era possível caminhar, e decidi ingressar em alguma Ordem Iniciática, que em tese, teria o propósito de conduzir o postulante por uma rota segura até onde os “grandes iniciados” haviam chegado. E era justamente aí que estava o problema: não conheci nenhum desses “grandes iniciados” vivos; ao contrário: só vi polêmicas, insanidade, vaidade, e dissoluções.

 As Ordens Esotéricas pelas quais passei estavam permeadas de intrigas, polêmicas infindáveis, vaidade, superficialidade, disputas de poder – coisa que me fez afastar-se o mais rápido que pude. Pareciam-me corpos mortos, cadáveres mantidos vivos por uma força artificial. E eu precisava de algo vivo e eficaz.

Nesta altura de minha vida, estava claro para mim que sem uma tradição viva, pulsante, algo que realmente não tivesse origem humana (e portanto fosse sagrado), não seria possível trilhar um caminho seguro rumo ao verdadeiro autoconhecimento. Dei então uma chance ao Budismo, aquele que me parecia mais possível de vivenciar, tendo em vista minhas limitações como um jovem moderno.

Escolhi então o Budismo Tibetano: uma tradição viva, com linhagem de mestres contínuos que transmitiram ensinamentos de boca a ouvido, um a outro. O Dharma de Buda muito arrojado, agradava meu intelecto; sua estética exótica me exaltava; e sua cosmogonia fazia muito sentido a mim.

Durante alguns anos de tentativa de ligar-me a esta tradição oriental, fui percebendo alguns aspectos peculiares no processe de vincular-se a uma tradição espiritual: não adianta que esta ofereça todas as possíveis respostas ao intelecto; não adianta que ela seja arrojada e impecável em sua teoria. Em suma: não basta que uma corrente religiosa ou filosófica satisfaça o indivíduo e o cative por seu aspecto geral: o fato é que é uma ilusão achar que podemos escolher uma tradição (como se estivéssemos num cardápio de restaurante!), e decidir vive-la só porque seu aspecto nos agrada, ou porque sua estrutura é brilhante – isso é mais uma ilusão da modernidade, da qual eu não estava consciente.

É necessário um tremendo esforço, quase que sobre-humano, para nos adaptarmos a correntes filosóficas não-ocidentais. Precisamos superar certos limites e estruturas psíquicas bem consolidadas em nós mesmos – barreira linguística, temporal, geográfica, cultural, artística, de vieses e de cosmovisão.

A proposta de práticas budistas para o dia-dia; as dietas recomendadas; a maneira de viver em comunidade (sangha); a língua usada na liturgia; a dedicação ao guru; as práticas espirituais em si; os custos financeiros altos; tudo isso se mostrou incompatível para mim, um rapaz mediano do Brasil, com nome de profeta bíblico (Daniel), com mãe de nome Maria, vivendo numa cidade chamada ‘Espírito Santo do Pinhal’, no estado de ‘São Paulo’, que morava próximo a uma Igreja Católica, num bairro com nome de santo, que falava português (a língua dos jesuítas que pisaram aqui séculos atrás!), que tinha o tempo livre aos sábados e comemorava o Natal com a família (mesmo afastado da Igreja Romana).

Percebi então que minha busca espiritual nunca foi uma questão de escolha, e sim de maturidade, respeito e obediência: respeito ao que se é de fato. Na pretensa escolha espiritual, existe prepotência; existe a noção de superioridade – “Eu escolho o melhor, o mais arrojado” e perde-se tempo tentando conciliar o inconciliável. Vive-se uma vida falsa, num universo forjado de certezas fabricadas.

Não bastava saber ler todo o Kangyur e Tengyur budista (cânone do Budismo tibetano) e internalizar tudo isto; não bastava ser um exímio estudante de lógica budista do Dignāga, se estas coisas todas só geravam mais e mais retificações, como dizia a própria filosofia budista. Existem coisas reais a serem vividas, o dia-dia, nossos vizinhos, nosso trabalho, nossos problemas. O próprio Dalai Lama, Tenzin Gyatso, figura de suma importância no Budismo, afirmou em uma entrevista que as pessoas não deveriam abandonar sua religião de origem.

Reconhecendo que ali não era meu lugar, ainda assim não voltaria para a Tradição Católica Apostólica Romana se não a respeitasse, se não a admirasse. Para isso, tive que me livrar de todo aquele lixo filosófico acumulado durante a adolescência. Tive de olhar para mim mesmo da forma mais verossímil que me fosse possível; e notei que este processo era o de conhecer a mim mesmo, meus antepassados e a civilização na qual estou inserido.

E eis que o mesmo maravilhamento intelectual me surgiu novamente, ao ver a grandeza de muitos cristãos – e essa grandeza histórica e espiritual voltou a me fascinar!

Apesar de estar há poucos anos de volta à Santa Doutrina Católica, só me resta ficar assombrado perante a grandeza teológica de Clemente de Alexandria, de São Tomás de Aquino, de Santo Agostinho, do Pseudo Dionísio Aeropagita. Mas não só isso: como foi observado,  só a admiração intelectual não basta! A própria vivência do Cristianismo me é possível, me é lícita, me é palpável; me é normal!

Os símbolos cristãos falam como seres vivos em minha vida, em meu bairro, no meu local de trabalho! A maravilhosa vivência em comunidade, importantíssima, como observa Voegelin:

“O despertar da fé e da consequente participação no Espirito Santo não é, portanto, um processo intelectual, mas sim a transformação de toda a personalidade, o processo pelo qual o homem é integrado na substância da comunidade. A transformação é descrita como uma “iluminação”, como uma “saborear do dom celestial” e, muito caracteristicamente, como um “contato com os poderes do mundo do porvir (dynamis).” (VOEGELIN, 2012, p.63)

                                                        

Finalmente me sinto protegido; me sinto seguro, num terreno familiar, numa experiência concreta, lógica, coesa e conectada ao meu modo de viver. Neste curto período de retorno à Santa Doutrina Cristã, sinto-me renovado e finalmente, a inquietude me abandonou. A vivência em comunidade tem sido uma medicina para o pecado capital que mais me afligia: o orgulho.

                                                         Fascina-me muitos dos tópicos da Santa Tradição e sua Teologia propriamente dita; mas, em especial as Teologias Moral e Ascética-Mística atraem-me de forma indescritível. Interesso-me também pelas diversas disciplinas de conhecimento e prática acessórias que se relacionam com o dia-dia do católico, em seu apostolado leigo, como as artes liberais, de modo geral e aqui está a maravilha: parece-me que o modo de vida católico parece ser especialmente afinado com nosso espírito ocidental…deixando abertura para nos dedicarmos conforme nossas forças e possibilidades, pois “Deus retribuirá a cada um segundo o seu procedimento” (Romanos 2:6).

A Teurgia significa isso pra mim hoje: o trabalho com a Santa Doutrina de Jesus Cristo, transmitida aos Apóstolos e aos Santos. A verdadeira espiritualidade para mim, não é uma questão de aparência, mas de essência: de abertura e coparticipação; de ajuda mútua.

Ser espiritualista não é ser “senhor de si mesmo” (como o Esoterismo Moderno brada), mas sim, ser servo do verdadeiro Senhor, na comunidade fundada por Jesus Cristo (a Igreja Católica), da qual Ele é a cabeça e nós o corpo.

Como bem coloca Voegelin:

“A comunidade (cristã) é uma unidade no Espírito tal que, qualquer que seja a estratificação social, cada pessoa desfruta da graça “de acordo com a medida do dom (charisma) de Cristo. Cada um dos diversos membros da comunidade possui dignidade e como indivíduos eles se complementam mutuamente de modo a formar juntos, por intermédio do batismo, o corpo de Cristo (corpus mysticum)”.

 

No decurso desta boa servidão colaboramos com as forças celestes para que os desígnios e a Providência manifestem-se em nosso mundo.                           

               

REFERÊNCIAS

DAWNSON, Christopher – A Criação do Ocidente: a Religião e a Civilização Medieval, 1ª Ed. – São Paulo, É Realizações, 2016.

VOEGELIN, Eric – História das Ideias políticas – Volume 1: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo – São Paulo – É Realizações, 2012.

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