O que significa ser tradicionalista?

Por Ir. Marcus Henrique

societassalomonica@yahoo.com

 

Nos últimos tempos, o termo “tradicionalista” parece ter ganho cada vez mais importância entre os buscadores: é cada vez mais comum encontrarmos relatos espirituais de praticantes que se dizem “tradicionalistas” ou “guardiões da tradição ocidental”, sem que pareçam sequer entender o que realmente significa o termo “Tradição”.

Falando especificamente do contexto brasileiro, vivemos uma onda de conservadorismo que vem se manifestando de forma intensa desde meados de 2016. Esse neo-conservadorismo nacional tem misturado elementos políticos e históricos através de uma espiritualidade que aparenta ser tradicionalista (mas que em sua essência não é), com forte apelo moralista e uma abordagem com ares cristãos (quase sempre de origem protestante).

A onda conservadora que se manifesta no Brasil atualmente não é exclusividade de nosso país: o cenário esotérico americano (tido como um dos maiores do mundo) também não difere muito do discurso neo-conservador brasileiro. E não são poucos os casos de autores  americanos que se apresentam publicamente como tradicionalistas ou adeptos de correntes espirituais “alinhadas à Tradição”, ao mesmo tempo em que misturam elementos de diversas filosofias (forçando um sincretismo espiritual absolutamente sem critérios), enquanto agem de forma arrogante e presunçosa perante o público.

Diante de todo esse cenário que descrevemos, fica-nos claro que o termo “tradicionalista” vem sendo usado de maneira deturpada e sem critérios, tanto no contexto brasileiro quanto no cenário americano. Dessa forma, o objetivo deste ensaio é apresentar a você leitor, uma interpretação sobre o tradicionalismo diferente do que você provavelmente tem lido no Brasil ou em fontes do exterior até este momento. Para isso, iremos analisar o que significa ser alguém tradicionalista, usando a chamada “análise negativa” (muito utilizada na Teologia Apofática): um método de estudo teológico cristão que analisa conceitos e definições não a partir do que esses conceitos representam (afirmações sobre o que são), mas a partir do que esses conceitos definitivamente não podem significar (através de negações). Assim, o objetivo da análise negativa é descrever fenômenos e conceitos através do uso da lógica, partindo-se do que esses conceitos não podem significar através do uso da razão (MONDIN, 1997).

Esperamos que este texto possa mostrar a você leitor, que nem tudo que se diz tradicional é realmente alinhado à Tradição Espiritual do Ocidente, e que nem todos aqueles que se auto intitulam tradicionalistas realmente agem de maneira tradicional. Assim, ficará mais fácil a você  se proteger de discursos pseudo-tradicionalistas, evitando se iludir com instituições ou personalidades aparentemente tradicionais, que na verdade manifestam em suas ações posturas e elementos completamente alheios ao conceito de “Tradição” utilizado no Ocidente.

 

1. Porque nem tudo que se diz “tradicional” é alinhado à Tradição

Analisar o que significa ser tradicionalista requer necessariamente analisar o que é a Tradição, e qual a importância desse conceito para a espiritualidade do homem ocidental.

Já explicamos aqui que o termo “Tradição” foi deturpado pela modernidade, transformando-se em sinônimo de algo “ultrapassado”, “obsoleto” ou mesmo “intolerante”. Esse discurso anti-tradicional ganhou corpo a partir da reforma protestante do século 16, que abriu precedentes históricos de contestação das religiões que formam a base do pilar judaico-cristão ocidental (Judaísmo e Catolicismo). Assim, foi a partir das ações de Lutero que as ideias do Iluminismo passaram a germinar, incentivando outras pessoas que também tinham um pensamento anti-tradicional a também se manifestarem, mesmo que ainda conservassem um discurso aparentemente moralista (MONDIN, 1982).

Não queremos aqui propor novamente um estudo histórico das influências perniciosas do Iluminismo sobre a espiritualidade do homem ocidental. O que nos interessa agora, é saber que o discurso neo-conservador que se manifesta atualmente no meio espiritual brasileiro (e até no meio espiritual americano), não é um discurso tradicionalista por um motivo muito simples: esse discurso é completamente alheio ao Judaico-Cristianismo, e contraria diretamente a Moral, a Filosofia e a Teologia judaico-cristãs.

 

O neo-tradicionalismo brasileiro tem uma base essencialmente protestante, usando um discurso liberal e conservador que lhe dão um ar “tradicional”, mas que na prática o afasta completamente da Tradição Espiritual Ocidental, já que o Protestantismo de Lutero nunca admitiu o conceito de Tradição (essencial ao homem ocidental).

No caso do cenário brasileiro, o neo-conservadorismo que presenciamos em nosso país tem ainda um grave fator a mais: trata-se de um discurso de base essencialmente protestante, manifestado por instituições pentecostais e neopentecostais presentes no Brasil, com grande enfoque em questões políticas e econômicas.

Todas essas constatações, por si só já deveriam ser mais que suficientes para demonstrar a você, leitor, que o neo-conservadorismo brasileiro é na verdade um movimento político e religioso de caráter protestante, alheio ao conceito de Tradição e que manifesta forte oposição ao Judaísmo e principalmente ao Catolicismo (Romano e Ortodoxo), que juntos formam o corpo moral e teológico do Judaico-Cristianismo.

Analisando-se o Protestantismo de maneira fria (enquanto movimento histórico e religioso), vemos que ele, por si só, nunca poderia ser considerado algo tradicional; longe disso: do alto de suas “95 teses reformistas”, Lutero sempre deixou claro sua intenção de se opor a qualquer conceito de Tradição, considerada por ele como uma invenção humana (NAVARRO, 2017). Para Lutero, o conceito de Tradição não merece respeito, pois tal conceito (em sua interpretação “reformista”) questionaria a glória de Deus.

Aparentemente, temos aqui uma supervalorização da divindade (o que seria algo louvável do ponto de vista teológico); porém, Lutero não tinha intenções tão nobres assim ao questionar o conceito de Tradição: na verdade, o que o monge alemão pretendia era unicamente questionar a unidade mundial do Cristianismo e dar margem a seus próprios instintos liberais, contrariando diretamente a noção de sucessão apostólica trabalhada dentro da doutrina cristã desde o século 1. Dessa forma, o raciocínio luterano propôs um Cristianismo simplificado através de uma teologia pobre e utilitária, que omitia tudo aquilo que fosse considerado por Lutero como “tradicional” (já que ele classificava esse conceito – de forma correta – como uma característica católica). Diante disso, o Protestantismo abriu mão de discutir questões metafísicas e sobrenaturais, concentrando sua atenção unicamente em assuntos concretos e palpáveis ao Homem, criando assim um pensamento pré-materialista, que se diferenciava dos materialismos posteriores (séculos 17 e 18) unicamente por ter um pano de fundo religioso. Isso aboliu o uso da razão e da filosofia no cenário protestante, já que a metafísica representaria um estudo “inútil”; assim:

A sua profunda desconfiança (protestante) na capacidade da razão para alcançar a verdade nas questões mais importantes, exerceu papel decisivo na evolução da filosofia moderna: contribuiu para fazê-la redimensionar as pretensões metafísicas da razão, levando-a a desembocar na posição kantiana de redução da área da razão ao campo dos fenômenos (MONDIM, 1982, p. 42. Grifo nosso).

 

Queremos aqui fazer um pequeno desafio a você, caro leitor: tente conversar com algum conhecido seu que seja protestante (evangélico pentecostal ou neopentecostal, luterano, ou de qualquer outra “denominação”). Tente perceber nesse seu amigo, algo de “tradicional” além de seu discurso conservador para questões morais. Mais que isso: pergunte a seu conhecido protestante o que ele acha do conceito de “Tradição”: provavelmente você perceberá que o moralismo de seu conhecido terá limites, e que apesar dele parecer ser “rígido” para assuntos do dia-dia, irá se mostrar muito “progressista” e “aberto” para questões que não envolvam diretamente convicções morais ou hábitos culturais. Assim, não será difícil para você enxergar seu conhecido protestante como alguém “moderno”, “pra frente”, “antenado” ou ávido por “novidades” (especialmente quando a conversa de vocês cair em temas como “Dinheiro” e “Religião”). É bem provável que seu conhecido protestante diga a você que o conceito de Tradição Ocidental “não existe” (ou mesmo que existe, mas que sua importância é “menor”, ou uma mera “formalidade acadêmica”); ou ainda poderá lhe afirmar que a Tradição simplesmente “é invenção dos homens”…

O motivo dos protestantes serem conservadores para algumas questões e “abertos” para outras pode parecer algo contraditório (e é!), mas não representa (do ponto de vista filosófico) nenhum mistério. Essa contradição protestante pode ser facilmente explicada através do uso da razão (tão desprezada por Lutero): o Protestantismo é um ferrenho defensor do Liberalismo, princípio filosófico que defende o pressuposto de que o Homem tem que ser livre para agir como quiser diante de qualquer assunto (inclusive na forma como interpreta Deus!). O Liberalismo protestante defende duas premissas básicas:

1º) O ser humano é imperfeito por conta do pecado original; por isso, nada que faça, materialmente ou espiritualmente (orações, ascese, purificações, etc.) poderá garantir sua salvação. Assim, rezar é algo quase inútil ao protestante (motivo pelo qual você dificilmente o verá orando fora dos cultos), já que somente a graça divina pode salvar o Homem;

e

2º) O ser humano não pode ser punido por nada que faça (nem mesmo pelos seus próprios erros!), exceto por Deus, que é Todo-Poderoso (e portanto, o Único a ter autoridade para punir o Homem).

 

Essa “defesa liberal” que os protestantes fazem às ações do ser humano, é estratégica: para Lutero, era conveniente defender sua própria liberdade de questionar o pilar judaico-cristão da Tradição Ocidental, propondo assim uma descentralização do Cristianismo e seu posterior enfraquecimento, ao mesmo tempo em que também usava um discurso intolerante e negacionista, rejeitando o livre-arbítrio do ser humano (quando isso era conveniente a seus propósitos) e naturalizando os erros do Homem a tal ponto, que somente sua fé (e não suas ações a partir dos preceitos da Tradição) seria suficiente para garantir sua salvação (NAVARRO, 2017).

Ao leitor, deixamos uma importante dica: não se iluda com o conservadorismo dos evangélicos brasileiros; tampouco tenha receio de se decepcionar com o Cristianismo por conta das atitudes tomadas pelos protestantes nacionais. O moralismo manifestado no discurso neo-conservador dos protestantes brasileiros não tem nada de “tradicional” (e muitas vezes, nem mesmo de “cristão”): trata-se pura e simplesmente de um discurso liberal, com forte viés econômico (outro grande interesse do Protestantismo, que é o “pai” do capitalismo moderno), e que busca pura e simplesmente defender interesses financeiros e religiosos de um grupo em expansão no país. Obviamente, esses interesses protestantes ficam camuflados em meio a um discurso de conservadorismo social e moralismo cristão, que muitas vezes se chocam diretamente aos preceitos teológicos e filosóficos da própria Tradição judaico-cristã ocidental.

Fenômeno curioso ocorre também com muitos adeptos do meio esotérico brasileiro, que atualmente se apresentam como exímios “tradicionalistas” em suas área de atuação. Muitos desses “neo-tradicionalistas” do esoterismo nacional, inclusive, possuem ampla experiência no campo do Esoterismo Moderno (através de passagens por Ordens Iniciáticas e filosofias espiritualistas pós-século 18), manifestando claro apreço por ideais iluministas em seus discursos. Assim, é comum vermos mestres  “neo-tradicionalistas” do esoterismo brasileiro ofertando cursos de Goetia Salomônica, magia Enochiana ou Astrologia Tradicional, ao mesmo tempo em que defendem ideias liberais e relativistas em suas aulas! (caindo em ampla contradição).

No caso do mercado esotérico americano , a situação também não é das melhores (apesar de lá, o mercado editorial ser bem mais intenso que no Brasil):  é comum percebermos no meio espiritualista dos EUA, autores que se apresentam como “neo-tradicionalistas” e que na verdade misturam aspectos de diversas correntes filosóficas e espirituais sem aparentemente terem nenhum propósito nesse sincretismo. Há ainda aqueles “neo-tradicionalistas” que lançam livros e coletâneas textuais como forma de atrair a si algum argumento de autoridade (ainda que acadêmica); e por último (mas não menos comum), há os “neo-tradicionalistas” que oferecem cursos de formação  em diversas áreas, mas que em sua própria vida pessoal manifestam opções religiosas e espirituais que contradizem diretamente os valores do próprio tradicionalismo que dizem seguir…

A essa altura, você leitor pode estar se perguntando: se a situação do cenário espiritual brasileiro e estrangeiro está tão confusa, o que significa realmente ser alguém “tradicionalista”? Quando podemos concluir que alguém é realmente um adepto da Tradição Espiritual Ocidental?

 

2. O que (não) é ser tradicionalista

Responder a essa pergunta não é algo simples. Para tanto, iremos recorrer ao método de “análise negativa” (Apofática), que consiste basicamente em se analisar um conceito não através do que ele significa, mas através do que ele não pode significar (usando-se a razão como critério lógico de análise). Essa análise será feita a partir de afirmações específicas que negam o tradicionalismo a partir da interpretação que comumente tem sido dada a ele no Brasil e nos EUA. Esperamos com isso, colaborar com o leitor para chegarmos a conclusão de que nem tudo (ou todos) que se dizem “tradicionalistas”, estão realmente alinhados à algum aspecto da Tradição Espiritual Ocidental.

 

1º Ponto: Ser tradicionalista não é ser elitista

O primeiro ponto a considerarmos é que ser adepto da Tradição Espiritual Ocidental não é ser membro de um “clube exclusivo de praticantes”: esse tipo de raciocínio é comum nas Ordens Iniciáticas do Esoterismo Moderno (como a maçonaria), que a partir do século 18 usaram (de forma presunçosa) o discurso de que o “verdadeiro conhecimento” só estaria disponível a quem fosse membro de alguma instituição iniciática moderna.

Esse tipo de exclusivismo é intensamente presente no meio esotérico americano, repleto de “igrejas iniciáticas” (quase sempre de caráter gnóstico), e de autores “tradicionalistas” que lançam livros e cursos anualmente (valendo-se do amplo mercado editorial dos EUA), e que transformam a espiritualidade num verdadeiro mercado onde cada estudante é disputado como clientela valiosa (e a própria espiritualidade é tratada como um produto a ser oferecido aos “clientes” certos).

 

O neo-conservadorismo brasileiro tem um espírito exclusivista e elitista, mas esconde diversas contradições filosóficas e teológicas que o afasta do pilar judaico-cristão da Tradição Ocidental.

É importante deixar claro que o significado do termo “tradicionalismo” é amplo: alguém pode apresentar-se como tradicionalista apenas sob um viés político; ou mesmo pode se classificar como um tradicionalista apenas sob um viés econômico (como os protestantes o fazem). Porém, independente do espectro que cada um desses supostos “tradicionalistas” defenda, ser um adepto da Tradição Espiritual Ocidental é ser um buscador como qualquer outro.

Ainda que o objeto de sua busca (a Tradição) seja infinitamente mais consistente que a espiritualidade moderna (superficial e iluminista), isso não faz de você alguém “melhor” que o próximo. Longe disso: infelizmente, há muitos “tradicionalistas” que agem de forma presunçosa, soberba e anti-ética; e o estudo da Tradição não fez deles pessoas melhores. Assim, o fato de estudar a Tradição Ocidental e suas culturas não torna alguém “melhor” ou “mais tradicional” que outra pessoa; ao contrário: aí é que se torna necessário compartilhar o conhecimento adquirido, pois “ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine” (1 COR, 13, 1).

 

2º Ponto: Ser tradicionalista não é ser apegado ao passado

O buscador tradicionalista tem um respeito considerável pelo conceito de Tradição e por tudo que ela representa à espiritualidade do homem ocidental. Isso faz com que todo adepto autêntico da Tradição Espiritual Ocidental (especialmente aqueles que trabalham com o Judaico-Cristianismo), recorram ao estudo de autores e obras clássicas como forma de obter acesso a conhecimentos ignorados pela espiritualidade moderna.

Todavia, o respeito ao passado não pode prender o tradicionalista a aspectos vivenciados em outros momentos da história humana. Dentro da própria Teologia Católica, o ex-papa (emérito) Bento XVI, afirmou em declaração pública, que a Tradição se manifesta como “atualização permanente, na Força do Espírito, e da comunhão eclesial original” (BENTO XVI, ORLF nº 18, 02/05/2006, p.12, Grifo nosso). Assim, pelas palavras do ex-sumo pontífice, percebemos que a Tradição é algo vivo e em constante transmissão.

Vivemos em um período pós-moderno, onde as próprias inovações da modernidade já estão sendo superadas por visões de mundo ainda mais materialistas e desumanas, e por filosofias espúrias que transformam o ser humano numa simples máquina reprodutora de vícios sociais. Dessa forma, o estudo da Tradição Espiritual Ocidental torna-se essencial não como um objetivo em si mesmo, mas como uma arma a ser usada pelo adepto contra os valores iluministas que insistem em se perpetuar na sociedade contemporânea. Por isso, os tradicionalistas autênticos compreendem que a efetividade de seu trabalho junto à Tradição Ocidental só se efetiva mediante uma aplicação útil dos ideais estudados à sociedade em que vive. Não basta estudar a Tradição: é preciso aplicá-la em nossa vida prática (caso contrário, ela torna-se um mero intelectualismo histórico e acadêmico). E prender-se a todas as características do passado não facilita a transmissão da Tradição a outros possíveis buscadores.

 

3º Ponto: Um tradicionalista não se apresenta publicamente como tal

Outra falha conceitual dos ditos neo-tradicionalistas é a aparente necessidade que tem de apresentarem-se publicamente (e a todo momento!) como “defensores da tradição”. Por isso, caro leitor, duvide essencialmente de alguém que tem um histórico galgado na espiritualidade moderna, mas se apresenta a você como um “guardião dos valores tradicionais”.

Não estamos com isso dizendo que ser tradicionalista é algo inato (que “vem de berço”), ou que certas pessoas simplesmente são tradicionais e outras nunca serão: isso seria recair no mesmo erro de nosso 1º Ponto de análise (defender uma elitização do conceito de tradicionalismo).

Pessoalmente, conheço muitos estudantes do esoterismo contemporâneo que mostraram interesse em se aprofundar na espiritualidade tradicional ocidental, se aproximaram da Tradição e chegaram à conclusão de que a espiritualidade moderna é superficial e falaciosa (abandonando assim, inclusive, seu contato com Ordens Iniciáticas modernas). Logo, chegamos à conclusão de que é possível sim tornar-se um tradicionalista (do ponto de vista espiritual), mesmo que o contato com o conceito de Tradição tenha sido feito de forma tardia.

A grande questão aqui é que “nem tudo que reluz é ouro”: esta máxima se aplica de forma digna aos inúmeros “mestres” do meio esotérico brasileiro, que se dizem ferrenhos “tradicionalistas”, mas que possuíram (e as vezes ainda possuem!) experiências com o Esoterismo Moderno, através de Ordens Iniciáticas ou sistemas filosóficos pós-século 18. Isso, por si só, já representa uma contradição explícita no discurso de alguém que afirma defender uma coisa mas que compactua também com valores que contradizem diretamente o primeiro objeto de sua defesa. E como disse Cristo, em seu sermão da montanha: “Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro” (MAT, 6, 24). Nesse caso, muitos “neo-tradicionalistas” brasileiros tentam a todo custo servir conscientemente “a dois senhores”, que nitidamente não compactuam entre si…

Uma pessoa tradicionalista simplesmente age de forma tradicional sem precisar recorrer a marketing pessoal em torno de suas ações. É comum que um tradicionalista não aja de forma tradicional apenas em seus estudos espirituais: ele tem também convicções tradicionais em outros campos de sua vida (política, economia, cultura, etc.).

 

Um verdadeiro tradicionalista não se apresenta publicamente como tal, pois a auto-afirmação como “tradicionalista” é uma estratégia de marketing muito comum no meio espiritual brasileiro.

Assim, uma pessoa tradicionalista não precisa anunciar a ninguém que o é; e mesmo assim você ainda o reconhecerá como tal. Isso praticamente exclui desse rol de possibilidades os protestantes, que apesar de parecerem ser tradicionalistas (usando uma roupagem moralista em seus discursos), são na verdade adeptos do Liberalismo, com discurso claramente iluminista.

Para não parecer injusto ou parcial, essa recomendação vale também para minha própria pessoa: por mais tradicionalista que eu possa parecer (e realmente sou), não acreditem em minha palavra simplesmente porque estou lhes dizendo isso neste artigo. Antes disso: investiguem meu histórico; entrem em contato com minha pessoa, e analisem minhas posturas, antes de concluir se minhas palavras podem ou não ser consideradas de alguém tradicionalista.

A Tradição está acima de vaidades humanas ou de interesses individuais: ela não perde sua essência, apesar de tomar roupagens diferenciadas em cada cultura e civilização. Assim, “[…] ainda que alguém – nós ou um anjo baixado do céu – vos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema” (GAL, 1, 8). Não acreditem em discursos tradicionalistas apenas porque alguém os proferiu: antes disso, “as ações falam mais que mil palavras”.

 

4º Ponto: Ser moralista nem sempre é sinônimo de ser tradicionalista

Aqui, grande parte dos neo-conservadores brasileiros perde sua aura de tradicionalismo (se é que realmente querem ser considerados tradicionalistas).

Conforme já conversamos ao longo deste artigo, ser moralista não é sinônimo de ser tradicionalista. Antes que perguntem: sim; um tradicionalista é, em muitos aspectos de sua vida, alguém moralista; mas nem todo moralista é necessariamente um adepto da Tradição Espiritual Ocidental. E os protestantes são exemplos claros disso, uma vez que se opõem a uma das bases da Tradição no Ocidente (o Catolicismo), manifestando total aversão ao conceito de Tradição e a tudo que seja considerado tradicional.

A Ética defendida pelos tradicionalistas segue os preceitos da Moral judaico-cristã presente nos ensinamentos do Judaísmo e do Cristianismo (em seus 15 primeiros séculos de existência). Já segundo Dawson (2014), o moralismo presente no protestantismo é a mesma Moral judaico-cristã, alterada por uma simplificação tendenciosa de natureza liberal: Lutero e os demais “reformadores” estrategicamente se apresentavam como cristãos, mas só seguiam a Moral judaico-cristã naquilo que lhes era conveniente. Assim, “a força de Lutero sempre repousa no subjetivismo: a afirmação dos direitos de consciência, a certeza da fé individual, e o direito de cada homem interpretar as Escrituras por si mesmo” (DAWSON, 2014, p. 115).

O conservadorismo que vemos atualmente no Brasil em nada tem a ver com o tradicionalismo (ainda que muitos neo-conservadores se apresentem estrategicamente como “tradicionalistas”). Ainda assim, a hipocrisia é uma marca registrada desse conservadorismo, que parece se guiar pela máxima do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

Ao leitor, deixo uma última dica: não avalie o grau de tradicionalismo de uma pessoa (se é que isso tem alguma importância no caráter de alguém) pelo seu nível de conservadorismo, mas acima de tudo pelas suas atitudes, convicções pessoais e por seu respeito ao conceito de Tradição. Se alguém é adepto (ou se já tiver sido) de religiões ou filosofias que contrariem os princípios da Tradição, e se acima de tudo ainda se identificar com os ideais dessas correntes por onde passou, essa pessoa provavelmente não será alguém tradicionalista (e nem se enxergará como um tradicionalista). Essa dica vale também para quaisquer instituições iniciáticas ou filosóficas que se apresentem como “tradicionais”.

 

Considerações Finais

Não se iluda com aparências, caro leitor. A roupagem não faz de uma pessoa alguém necessariamente tradicionalista. E ainda que o seja, o fato de alguém se dizer tradicionalista (ou se apresentar como tal) não é suficiente, por si só, para se dar confiabilidade a seu caráter.

“De boas intenções, o inferno está cheio”.  Infelizmente é a partir desse pressuposto que devemos analisar a polêmica em torno do “ser” ou “não ser” tradicionalista. Ser tradicionalista não faz alguém ser melhor que os demais, e nem mesmo uma boa pessoa: ultimamente o adjetivo “tradicionalista” tem se referido, no meio espiritual brasileiro (e até mesmo no meio estrangeiro) a pessoas moralistas, conservadoras, e que disfarçam um discurso liberal em meio a interesses particulares. Ou seja: a ênfase nesse neo-tradicionalismo parece ter se perdido em meio a um jogo de marketing onde o “parecer ser algo” é mais importante do que o que realmente se é…

Ao leitor do blog, deixo uma convite à reflexão: não confiem em aparências ou em discursos pré-fabricados de tradicionalismo. O estudo da Tradição Ocidental é importante, mas só é válido enquanto ferramenta espiritual, e não enquanto suporte de engrandecimento do ser humano ou ferramenta de estímulo à ideais fúteis, pois “Maldito o homem que confia em outro homem, que da carne faz o seu apoio e cujo coração vive distante do Senhor!” (JER, 17, 5).

 

REFERÊNCIAS

BENTO XVI, Papa. Vaticano: ORLF nº 18, 02/05/2006.

BÍBLIA SAGRADA. 1ª Carta de São Paulo aos Coríntios, Capítulo 13, Versículo 1.

______ . Carta de São Paulo aos Gálatas. Capítulo 1, Versículo 8.

______ . Livro do Profeta Jeremias. Capítulo 17, Versículo 5.

______ . Evangelho de São Mateus. Capítulo 6, Versículo 24.

MONDIN, Battista. Quem é Deus? São Paulo: Paulus, 1997.

______ . Curso de Filosofia – Volume 2. 6ed. São Paulo: Paulus, 1982.

DAWSON, Christopher. A Divisão da Cristandade. São Paulo: É realizações Editora, 2014.

GAUDRON, Mathias. Catecismo católico da crise na Igreja. Niterói-RJ: Permanência, 2011.

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