Por Ir. Marcus Henrique
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No artigo anterior, vimos que a Tradição Espiritual Ocidental é a manifestação da própria Tradição perene, por meio do substrato de quatro grandes culturas do Ocidente (cultura Pagã e Xamanismo Afrodescendente, cultura Egípcia, cultura Greco-Romana e cultura Judaico-Cristã).
Na 3ª parte desta série, iremos analisar de que forma a espiritualidade Tradicional do Ocidente se manifestou (e ainda se manifesta) em termos práticos, através de seu “tripé prático” (ou “Trivium Hermético”).
O Trivium Hermético: a base do trabalho prático da Tradição Espiritual Ocidental
Vimos que a Tradição Ocidental é pautada nas culturas pagã, egípcia, greco-romana e judaico-cristã, e que a espiritualidade tradicional praticada no Ocidente afasta-se de conceitos iluministas e modernos (além de afastar-se também de conceitos orientais). A partir de agora, tentaremos entender como a Tradição Ocidental manifesta-se de forma prática, através das suas três artes herméticas.
O Trivium Hermético é a base de toda a Tradição Esotérica Ocidental. É sobre três artes espirituais (Astrologia, Alquimia e Teurgia) que a espiritualidade do Ocidente repousa suas práticas religiosas/filosóficas. Assim, qualquer sistema filosófico ou espiritual que não faça uso dessas três artes herméticas, em maior ou menor grau (ou faça uso de apenas algumas delas), não pode ser considerado “tradicional”, ou mesmo “pertencente à Tradição Ocidental”. Aqui, grande parte das Ordens Iniciáticas modernas e correntes filosóficas pós-século 19 já perdem sua “aura” (muitas vezes presunçosa e desonesta) de “tradicionalismo”.
É preciso destacar que quando se fala do Trivium Hermético, estamos nos referindo à três artes específicas: a Astrologia Tradicional (e não a Astrologia Moderna); a Alquimia Laboratorial (e não a “alquimia psicológica” comumente abordada a partir do século 19); e a Teurgia (e não a prática de “magia psiquista” ou psicologizada, ou mesmo os exercícios orientalistas amplamente divulgados a partir do século 19).
A modernidade adaptou ou criou variações das três artes do Trivium Hermético. Essa foi uma estratégia utilizada pelo Esoterismo Moderno como tentativa de puxar para si alguma forma de “validação histórica” que lhe possibilitasse obter a mesma credibilidade da Tradição Espiritual Ocidental. Para isso, a modernidade apropriou-se das artes herméticas e as transformou em “ciências ocultas” (RIFFARD, 1990), dando a elas um ar de “cientificidade” e as tentando aproximar do método científico moderno.
É desnecessário dizer que tanto a Astrologia Tradicional, quanto a Alquimia Laboratorial e a Teurgia não são ciências (no sentido materialista do termo “ciência”). As três são artes espirituais, porque demandam de seus operadores habilidade de manuseio e sensibilidade para se interpretar os resultados obtidos (sensibilidade essa que simplesmente não existe no método
científico moderno, pautado na frieza e na busca por resultados sem refletir-se sobre eles). É por essa razão que não nos referimos nunca à Astrologia, Alquimia ou Teurgia como “ciências espirituais” (mesmo que muitos estudantes da modernidade prefiram se referir a elas dessa forma), visto que tratá-las como ciências (mesmo que “espirituais”) já é um grande passo para se analisá-las sob um viés materialista moderno.
De acordo com o alquimista Jean Dubuis, o estudo do Trivium Hermético é amplo, e exige do praticante muita dedicação e seriedade de intenções. O autor chama o Trivium Hermético de “retrato tríplice” (em alusão a alguma estrutura de altar que faça uso de três imagens religiosas simultaneamente), e deixa claro que o estudo das três artes é costumeiramente mais profundo do que se imagina, envolvendo também o estudo de simbolismo, numerologia e mitologia (DUBUIS, 2000).
Eliphas Levi, tido como um dos “baluartes” da espiritualidade moderna, também dividiu a Tradição Espiritual Ocidental em Astrologia, Alquimia e Teurgia. Porém, ele usou nomenclaturas diferentes para se referir ao Trivium Hermético: o autor separou a Cabala da prática de Magia, e incluiu o estudo de Astrologia no que ele denominou simplesmente de “Hermetismo” (LEVI, 2009). Seja como for, mesmo que diferentes autores tenham adotados nomenclaturas distintas (ou feito divisões diferentes), a base da prática espiritual do Ocidente reside sempre nas três artes do Trivium Hermético (em maior ou menor grau).
A primeira arte do Trivium Hermético é a Astrologia Tradicional. Ela é a base dos estudos espirituais da Tradição Ocidental, e é a arte responsável pelo estudo dos astros e sua influência nas ações dos seres humanos. Por ser a base do Trivium Hermético, o trabalho com as outras duas artes (Alquimia Laboratorial e Teurgia) exige necessariamente conhecimentos astrológicos (especialmente para a escolha do melhor momento para se efetuar os trabalhos espirituais, a chamada “Astrologia Eletiva”).
Diferente da Astrologia Moderna (pautada no bem estar do ser humano e na explicação da personalidade do consulente como critério de “autoconhecimento”), a Astrologia Tradicional tem como principal foco a predição de acontecimentos na vida do homem. Sua base epistemológica é essencialmente pautada na ideia de “destino” trabalhada no Estoicismo, e também bastante influenciada pelo ideário espiritual judaico-cristão, responsável pela divulgação da ideia dos astros como “representantes do criador”.
A segunda arte hermética é a Alquimia Laboratorial. Ela é o trabalho de evolução espiritual que é feito através do auxílio à evolução da própria natureza, por meio da manipulação direta da matéria. Apesar de o nome
sugerir algo meramente experimental e feito em laboratório, a Alquimia Laboratorial tem também um aspecto espiritual: a prática do oratório. É daí que surge a expressão latina “Ora et Labora” (reza e trabalha).
A Alquimia Laboratorial se divide de acordo com o “reino” no qual o trabalho alquímico é realizado: Animal, Vegetal ou Metálico. Todavia, na prática, o trabalho alquímico é comumente dividido em duas categorias: Espagiria (trabalho com os vegetais) e Alquimia Mineral (trabalho com os metais).
Já a Teurgia é o trabalho de evolução espiritual através do contato direto com o Todo-Poderoso, por meio das entidades que compõem as diversas hierarquias espirituais presentes na Criação. Também conhecida no Ocidente (nem sempre de maneira correta) como “Magia Cerimonial“, a prática de Teurgia consiste essencialmente no trabalho de Invocação e Evocação de anjos, arcanjos, demônios, elementais, desencarnados ou mesmo dos nomes divinos de Deus, como forma de se obter conhecimento direto das entidades que compõem a criação visando o crescimento espiritual do operador.
Constantemente pautada na prática de orações, a Teurgia tornou-se muito popular no Esoterismo Moderno por conta da popularização simplificada (e estereotipada) da Goetia (grimório mágico cerimonial pertencente à Tradição Salomônica). É necessário também dizer que a Teurgia não faz levantamentos morais em torno de seu trabalho, e por mais clichê que possa parecer, é necessário ressaltar que a divisão entre “magia branca” e “magia negra” (muito difundida no Esoterismo Moderno) diz mais respeito às intenções do operador que à prática de Teurgia em si.
Para Jean Dubuis, o Trivium Hermético é um estudo que vai “além da vida”: assim, “As a summary, Alchemy would be the study of chemistry plus Life; Magic the study of physics plus Life; and Astrology the study of Astronomy plus Life“. (DUBUIS, 2000, p. 121). [1]
Conforme o leitor deve ter percebido, a Cabala não está inclusa como uma das três artes herméticas. Por isso, é preciso deixar claro qual a posição da Cabala na Tradição Espiritual Ocidental (uma vez que ela guarda muita popularidade entre os sistemas filosóficos e espirituais da modernidade).
A Cabala não foi citada no Trivium Hermético por uma razão muito simples: uma parte dela já está contida na Teurgia, como parte integrante desta última (no que muitos autores medievais denominavam de “Cabala Prática”, ou simplesmente “Cabala Cristã”).
A Cabala é parte essencial do misticismo judaico, e por isso mesmo, fator primordial na formação da identidade da Tradição Espiritual do Ocidente (como parte da cultura judaico-cristã). Sua atuação na espiritualidade Ocidental ganhou destaque a partir do século 13, por meio da divulgação feita por Moisés de Leon. A partir daí, a Cabala foi fortemente utilizada na prática de magia cerimonial tradicional nos séculos que seguiram, fosse através do uso do alfabeto hebraico, fosse através da utilização de chaves de invocação de anjos, arcanjos ou dos nomes divinos do Criador. Toda essa utilização ficou popularmente conhecida entre os autores ocidentais como “Cabala Prática”, ou mais precisamente “Cabala Cristã”, parte integral da Teurgia.
Obviamente, a Cabala tem um corpo de conhecimentos bem mais vasto que seu aspecto prático que foi incorporado à Teurgia Ocidental. Porém, o aspecto cabalístico comumente adotado na prática teúrgica ocidental diz respeito ao auxílio que a Cabala (enquanto arte espiritual judaico-cristã) pode oferecer ao trabalho mágico do Ocidente. Isso inclui diretamente a abordagem prática do
alfabeto hebraico e as maneiras corretas de se invocar nomes divinos comumente presentes em círculos mágicos e inscrições contidas na parafernália mágica. Esse tipo de trabalho espiritual foi intensamente feito no período medieval, onde os cabalistas cristãos que trabalhavam com a Teurgia, “[…] se interrogavam sobre os nomes dos anjos, sobre a significação dos textos bíblicos à força de anagramas” (RIFFARD, 1990, p. 581).
A essa altura, já deve ter ficado claro ao leitor que a Tradição Espiritual Ocidental sustenta sua metodologia prática em três artes distintas (com a Cabala estando inclusa em uma delas, por meio de um sincretismo). Astrologia, Alquimia e Teurgia formam a base de toda a prática espiritual do Ocidente, e as três sempre estiveram presentes na espiritualidade ocidental, fosse na cultura pagã (celta e xamânica), na egípcia, na cultura greco-romana ou mesmo no panorama judaico-cristão.
Como dissemos anteriormente, o trabalho com o Trivium Hermético é condição sine qua non para que qualquer corrente filosófica ou espiritual seja considera “tradicional” ou mesmo pertencente à Tradição Ocidental: trabalhar com as três artes simultaneamente é algo absolutamente necessário (apesar de aparentemente “impossível” na atualidade, por conta da falta de praticantes genuínos da espiritualidade Ocidental).
O trabalho com apenas duas dessas artes, ou mesmo com apenas uma, já é suficiente para se caracterizar qualquer Ordem Iniciática ou corrente filosófica como “não-tradicional” ou “não pertencente à Tradição Ocidental” (conforme já explicitado pelos autores citados ao longo deste artigo). Assim, as correntes filosóficas e espirituais e Ordens Iniciáticas que não se enquadram como “tradicionais”, encaixam-se quase que automaticamente como pertencentes ao Esoterismo Moderno.
No próximo artigo desta série, iremos analisar as origens do Esoterismo Moderno, a grande influência que essa forma contemporânea de espiritualidade sofreu do Iluminismo, e os problemas epistemológicos que ele enfrenta para se respaldar enquanto tendência espiritual contemporânea no Ocidente.
REFERÊNCIAS
DUBUIS, Jean. The Fundamentals of esoteric Knowledge. Triad Publishing, Gainesville-EUA, 2000.
RIFFARD, Pierre. O Esoterismo: antologia do esoterismo ocidental. Ed. Mandarim. São Paulo: 1996.
[1] “De forma resumida, a Alquimia seria o estudo da Química aplicado à vida; a Magia, o estudo da Física aplicado à vida; e a Astrologia, o estudo da Astronomia aplicado à vida”. Tradução livre.