O papel do homem no trabalho espiritual ocidental

 

Por Ir. Marcus Henrique

societassalomonica@yahoo.com

 

Escrever sobre qual deve ser a postura do Homem nos trabalhos com a Teurgia Ocidental não é uma tarefa simples: o Esoterismo Moderno absorveu completamente os ideais iluministas sobre o papel do Homem na Criação, vendendo uma ideia distorcida e irreal de “independência espiritual” em torno das ações humanas, como se o ser humano bastasse a si mesmo, tivesse liberdade irrestrita sobre seus atos e não devesse satisfações a ninguém.

A ideia de se trabalhar magia usando valores como humildade e paciência é algo considerado quase absurdo à espiritualidade moderna: ser humilde tornou-se sinônimo de ser “subserviente”, o que parece contrariar diretamente o pensamento esotérico pós-século 18, que defende uma ideia divinizada do ser humano como “senhor de si mesmo”. Todavia, as ideias esotéricas propagadas no Esoterismo Moderno (e que são derivadas diretamente do Iluminismo) não encontram respaldo no trabalho mágico da Tradição Espiritual Ocidental, que defende uma visão mais teocêntrica do ato mágico (Teurgia), em detrimento à abordagem mágica antropocêntrica defendida na modernidade.

De uma forma geral, a discussão sobre como o operador de magia clássica deve portar-se em seus trabalhos espirituais, gira quase sempre em torno de como o ser humano deve abordar sua relação com Deus durante o ato mágico em si. De certa forma essa é uma questão de natureza teológica, que exige de todos os que desejam trabalhar com a Teurgia Ocidental um tempo de reflexão sobre o assunto: como deve ser a relação do ser humano com Deus durante a prática de magia clássica? Qual é a posição do Homem diante do Todo-Poderoso?

Sem dúvida, essas são questões que exigem amadurecimento por parte daqueles que desejam se livrar dos vícios do Esoterismo Moderno: falar de Deus e de sua influência sobre qualquer trabalho espiritual (assim como falar sobre a postura do Homem nas práticas espirituais) é um assunto sério, que exige uma análise cuidadosa e meticulosa do assunto, e que esteja além da influência do discurso iluminista que prevalece na espiritualidade moderna. Além disso, é importante procurar referências alinhadas à Tradição Ocidental que auxiliem nessa discussão, de forma a esclarecer como o ser humano deve portar-se em seus trabalhos mágicos, visando a sublimação de seus limites.

Neste pequeno ensaio tentaremos apresentar algumas ideias básicas sobre qual deve ser a postura do Homem diante de Deus durante o trabalho com a Teurgia Ocidental (a partir dos pressupostos espirituais judaico-cristãos). Também tentaremos refletir um pouco sobre qual deve ser a relação entre magia e religião durante a prática de Teurgia, e como a Teologia judaico-cristã é valiosa no trabalho mágico ocidental (ao contrário do que o Esoterismo Moderno erroneamente supõe). Para isso, usaremos como principais referências, os textos de autores como Aquino (2013), Tanquerey (2017) e Escrivá (2005), explorando a ideia do que significa verdadeiramente ser um “filho de Deus”.

 

  1. O ser humano na Natureza: criador ou criatura?

O maior erro do Esoterismo Moderno em suas práticas mágicas é absorver a ideia iluminista de que o ser humano é “poderoso” e “desconhece seu próprio poder”. O Iluminismo recorre de forma estratégica às escrituras bíblicas para respaldar a ideia de que o Homem é um criador em potencial e tem livre-arbítrio para agir sobre a natureza, devendo por isso ser o único responsável por seu destino (MONDIM, 1982).

Para o Iluminismo, a religião (especialmente o Judaico-Cristianismo) é nociva ao desenvolvimento da humanidade porque impede o Homem de estabelecer sua “independência existencial”. Dentro dessa linha de raciocínio, a humanidade deve ser livre para agir e obter os frutos de sua ação, deixando Deus e a religião em um estado secundário (na melhor das hipóteses).

Para entendermos o que magia clássica realmente pensa sobre o papel do ser humano na Criação (a partir do pilar judaico-cristão da Tradição Ocidental), precisamos primeiramente tirar o Homem do pedestal irreal em que o Iluminismo o pôs (posição compactuada pelo Esoterismo Moderno), devolvendo o ser humano a seu lugar de origem no ordenamento ontológico: o de representante de Deus na Terra.

Inicialmente, gostaríamos de propor uma “revolução copernicana às avessas”, usando algumas perguntas que nos ajudarão a refletir sobre como o Homem deve portar-se no trabalho mágico ocidental. Dessa forma, devemos nos questionar:

1) O que é o Homem, e como ele deve se dirigir a Deus nos trabalhos de Teurgia Ocidental?

2) Qual o papel da Religião na prática de Magia Clássica?

 

1.1 O que é o Homem, e qual sua posição diante do Todo-Poderoso

Dentro da Tradição Espiritual Ocidental, o papel do ser humano na Criação sempre ocupou o cerne na reflexão sobre a Fé, e foi, por exemplo, objeto de preocupação máxima da Igreja Católica de Roma. Consequentemente, sempre foi objeto de investigação teológica saber onde o Homem se encontra na estrutura da Criação e qual seu papel nos planos do Criador.

Aquino (2013) afirma que Deus, que é Todo Poderoso, se manifestou na Criação através do ser humano. Dessa forma,

“É preciso conhecer o ser humano para conhecer Deus – no rosto do ser humano brilha a face de Cristo. E na de Cristo, o rosto do Pai Celeste. O homem é compreendido como ouvinte da palavra.” (AQUINO, 2013, p. 273)

 

Nas palavras do autor examinamos a descrição da convergência entre as figuras de Deus, Cristo e do Homem. Não apenas essa relação, mas o local que o ser humano se encontra nesta organização. Aqui também é possível começar a responder o que é o Homem: um “ouvinte da Palavra” de Cristo, o que verdadeiramente nos remete à humildade de alguém que espelha em seu rosto, não apenas o reflexo da face de Cristo, mas sua práxis, a via correta, a maneira de nos aproximarmos de Deus.

É preciso deixar claro que apesar de ser um reflexo do Criador, o Homem, por si só, não é Deus e nem se equivale a Ele em poder. O Esoterismo Moderno comumente se refere ao ser humano como “dono de poderes desconhecidos” e “co-criador” (mantenedor) da Natureza ao lado do Altíssimo, mas a verdade é que os aclamados “poderes humanos” a que a espiritualidade moderna tanto se refere, não modificam a essência do Homem em nada: o ser humano não é um criador autônomo, e continua imperfeito, efêmero e sujeito à morte. Todo o poder de criação que o Homem possui provém diretamente de Deus: é uma graça concedida por Ele ao ser humano, assim como todas as demais qualidades que este manifesta em sua existência (MONDIM, 1980). Dessa forma, o homem é criatura, uma parte da Criação que foi planejada por Deus (mesmo que tenha em si a capacidade de eventualmente manifestar dons especiais que o tornam superior aos animais).

Constatar que o ser humano é parte da Criação e não seu Criador (no sentido pleno da palavra), é algo que coloca sob terra grande parte do raciocínio iluminista que depositava “ilimitada confiança na razão humana, considerada capaz de dissipar as névoas do ignoto e do mistério” (MONDIM, 1982, p. 153). Sem dúvida nenhuma, o pensamento mágico moderno bebeu dos ideais iluministas, vendendo a ideia (falsa) de que, se conseguir dominar os poderes que desconhece em si mesmo, a humanidade seria capaz de transcender os limites de sua própria existência. Porém, a própria existência humana nos comprova que o raciocínio iluminista e suas críticas à Religião não são nada mais que falácias embebidas de um discurso retórico e raivoso.

O Iluminismo dos séculos 17 e 18 depositou uma fé exagerada na razão humana, alimentando uma esperança iludida de que sozinho, o Homem seria capaz de descobrir o sentido de sua existência.

Segundo Tanquerey (2017, p. 67) “pela reta razão vemos, sem dúvida, que nos devemos submeter plenamente àquele que é nosso soberano e Senhor. Mas esta obediência custa-nos”. A “reta razão” a que o autor se refere, é o princípio único presente nas ideias de Aristóteles, Cícero, Santo Tomás de Aquino e diversos outros autores da Tradição Ocidental: trata da ideia fundamental e imutável daquilo que é o correto no agir, pois sem ela não pode haver virtude.

É no agir, no cotidiano prático e no exercício da humildade, que encontramos a postura que Homem deve ter diante de Deus em qualquer trabalho espiritual que ele realize dentro da Tradição Ocidental, já que nas palavras de Cristo, Ele mesmo é “o caminho, a verdade e a vida”, e “Ninguém vai ao Pai senão por Ele” (JO, 14, 6). A ideia de se submeter a Cristo em operações mágicas não encontra receptividade no pensamento mágico moderno porque destrói a presunção do homem moderno de que seria feliz “vivendo em conformidade com sua natureza” (MONDIM, 1982, P. 153).

 

  1. O papel da Religião na Teurgia Ocidental

A Teurgia Ocidental não deixa espaços para o culto ao ser humano: o objetivo de todos aqueles que trabalham com a Magia Clássica do Ocidente seguindo a linha judaico-cristã, é obter conhecimentos e sabedoria que o auxiliem em sua evolução espiritual. Esses conhecimentos são obtidos, dentro da Tradição Ocidental, através do contato com hierarquias espirituais, seja de forma direta (evocações), seja de forma indireta (devocional e religiosa). Dessa forma, ignorar o papel da Religião no trabalho teúrgico é se render aos vícios da espiritualidade moderna, superficial e antropocêntrica.

Cristo é nosso advogado espiritual diante do Pai-Eterno: não a toa é considerado um “gatekeeper”, um guardião dos portões do Plano Espiritual e intermediador no contato dos seres humanos com Deus…o que segundo Leitch (2014) o classificaria como um “intermediary spirit” (espírito mediador do Plano Espiritual). Porém, na prática, Cristo é mais que isso: é a própria manifestação visível do Todo-Poderoso, que é absolutamente indescritível ao ser humano e encontrou na própria natureza humana (criação sua!) uma forma de se manifestar ao Homem na 2ª Pessoa da Santíssima Trindade Espiritual.

A prática da Magia Clássica do Ocidente é essencialmente religiosa: o trabalho com Teurgia exige dos operadores atuarem como sacerdotes em suas operações espirituais. Dessa forma, é comum que os praticantes de Teurgia Ocidental devam celebrar cerimônias longas em seus trabalhos espirituais, usar parafernálias específicas designadas em textos igualmente específicos (e construídas pelo próprio praticante) e adotarem uma postura religiosa em muitos momentos da ação mágica.

A Religião é parte integrante do trabalho teúrgico ocidental: as operações de Teurgia judaico-cristã muitas vezes exigem do praticante uma postura sacerdotal, através de preparações, purificações e realização de longas cerimônias que são diretamente influenciadas por aspectos religiosos.

A ideia de que Magia e Religião são coisas “diferentes”, e de que uma não tem nada a oferecer à outra, é inapelavelmente moderna: foi no século 18 que o Iluminismo deu início a uma perseguição à Religião (em especial ao Judaico-Cristianismo) usando o argumento de que a efetiva liberdade do Homem só seria obtida destruindo-se a imagem da Religião perante a sociedade (MONDIM, 1982). Todavia, devemos chamar a atenção mais uma vez para o fato de que, no trabalho com Magia Clássica, a Religião tem uma importância considerável: ela ajuda o praticante a manter contato com as hierarquias espirituais que irão auxiliá-lo em sua caminhada espiritual; e o domínio de seus pressupostos teológicos, fazem com que o praticante compreenda de forma ainda mais profunda a natureza dos espíritos com os quais manterá contato.

A Religião é parte integrante do trabalho teúrgico ocidental: as operações de Teurgia judaico-cristã muitas vezes exigem do praticante uma postura sacerdotal, através de preparações, purificações e realização de longas cerimônias que são diretamente influenciadas por aspectos religiosos.

Segundo Tanquerey (2017), a Religião ajuda o ser humano a encontrar a própria Verdade e a elucidar diante de si o caminho espiritual que deve trilhar. Como homens, temos o compromisso de retornar ao nosso estado natural, vivido por nossos ancestrais em comum: “a elevação do Homem ao estado sobrenatural” (TANQUEREY, 2017, p. 44). Assim:

 

“Tal houvera sido o Homem no que se chama o estado de “natureza pura”, que aliás nunca existiu, pois que o Homem foi elevado ao estado sobrenatural, ou no momento da sua criação como diz Santo Tomás, ou imediatamente depois como opina São Boaventura” (TANQUEREY, 2017, p. 67).

 

Recuperar a dignidade espiritual que nos foi perdida não é algo que conseguimos fazer por nossa própria natureza. Ainda assim, não devemos nos render ao pensamento iluminista, que prega uma ideia naturalizada (e idealizada) do ser humano e de suas fraquezas, mas nos conscientizar de que devemos iniciar o trabalho espiritual de resgate de nossa nobreza espiritual (independente de nosso estado espiritual atual).

O conhecimento da Teologia judaico-cristã ajuda os praticantes de Teurgia Ocidental a compreender melhor a essência dos trabalhos espirituais que precisam realizar, e como devem portar-se perante Deus nesses trabalhos.

O objetivo da Teurgia Ocidental, dentro do pilar judaico-cristão, não é dar ao Homem um estado de vida alinhado aos valores materiais, mas sim conscientizá-lo de que ele (ser humano) é algo maior que a matéria: é parte primordial da Criação, e como tal deve almejar recuperar sua dignidade que foi perdida através da queda primordial. Essa “recuperação espiritual”, por si só, não pode ser conseguida com o pensamento soberbo do Iluminismo (razão pela qual o Esoterismo Moderno também está fadado ao fracasso); ao contrário: deve ser conquistada através de humildade e perseverança. Devemos aprender a enxergar a Criação como um plano divino idealizado além da Vontade humana, mas que conta com sua atuação (respeitando a ordem das coisas) e não simplesmente como algo que deve se adequar a nossos desejos, uma vez que nem sempre esses desejos serão verdadeiros e justos. Assim, o trabalho de Magia Clássica deve ser acima de tudo, um trabalho de humildade perante o que se deseja obter.

O conhecimento da Teologia judaico-cristã ajuda os praticantes de Teurgia Ocidental a compreender melhor a essência dos trabalhos espirituais que precisam realizar, e como devem portar-se perante Deus nesses trabalhos

Para Escrivá (2005), “ser fiel a Deus exige luta. E luta corpo a corpo, homem a homem – homem velho e homem de Deus – detalhe a detalhe, sem claudicar” (ESCRIVÁ, 2005, p. 432). Dessa forma, comportar-se como “filho de Deus” é lutar diariamente contra nossas fraquezas morais; é combater o “Bom Combate”. É necessário que o Homem viva retamente, não apenas diante dos outros homens, mas também diante do Criador.

Mas como devemos percorrer esse caminho de luta moral? Devemos nos deixar influenciar pelos dados sérios oriundos da Filosofia e das Ciências Sociais, porém sem deixar nos levar por reducionismos espiritualistas, individualistas e antropocêntricos (AQUINO, 2013). É importante evitar a presença de ideias excessivamente progressistas em trabalhos espirituais, transformando assuntos que pertencem ao campo do sagrado em questões meramente humanas, com teor político e antropocêntrico.

Religião e Magia possuem uma ampla integração no trabalho de Teurgia Ocidental. Pensar ambas como áreas separadas é um erro grave, que descaracteriza a prática da Magia Clássica e deixa o ser humano à mercê dos ideais espiritualistas modernos.

Cristo é o perfil a ser imitado por parte daqueles que desejam trabalhar com a Teurgia judaico-cristã: como Deus e como Homem, Ele representa os ideais de fidelidade, humildade e perseverança que são exigidos do ser humano nas operações teúrgicas do Ocidente.

Cristo é o perfil a ser imitado por parte daqueles que desejam trabalhar com a Teurgia judaico-cristã: como Deus e como Homem, Ele representa os ideais de fidelidade, humildade e perseverança que são exigidos do ser humano nas operações teúrgicas do Ocidente.

A Religião é uma base moral onde o operador da Tradição Ocidental sustenta seus conhecimentos sobre as hierarquias espirituais com as quais mantém contato. Para todos aqueles que desejam se aprofundar na Teurgia judaico-cristã, a espiritualidade ocidental tem na figura (e na vida) de Jesus Cristo, o método de como viver e se portar diante de Deus Todo-Poderoso. Dessa forma, a todos os que desejam conhecer um pouco mais a Magia Clássica Ocidental, é importante chamar a atenção para a necessidade de se evitar os mitos modernos (iluministas) sobre a Religião, e conscientizar-se de que o ser humano, em si mesmo, é falho e incapaz de mudar a natureza em que se encontra. Dessa forma, e apenas através de humildade, os interessados em se aprofundar na prática da Magia Clássica Ocidental podem se conscientizar de que o mistério da identidade do Homem, na verdade, é explicado na encarnação divina do Verbo no próprio Homem.

 

 

 

REFERÊNCIAS

AQUINO, Francisco. A Problemática da Teologia Antropológica. Revista Atualidade Teológica, Ano XVII, nº 44. Rio de Janeiro: PUC, 2013.

BÍBLIA SAGRADA. Evangelho de São João, Capítulo 14, Versículo 6. Ed. Ave Maria. São Paulo: 2015

ESCRIVÁ, São José Maria. Sulco. Editora Quadrante. São Paulo: 2005.

LEITCH, Aaron. The Lost Secrets of Western Magick Revealed, Llewellyn Journal Site, 2014. Acesso em 15/7/2020, às 16h. Disponível em https://www.llewellyn.com/journal/article/2478

MONDIM, Battista. Curso de Filosofia – Vol.2, 6ed. São Paulo: Paulus, 1982.

__ . O Homem, quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica. São Paulo: Paulus, 1980.

TANQUEREY, Adolphe. Compêndio da Teologia Ascética e Mística. Editora Cultor de Livros. São Paulo: 2017.

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